Você sabe por que faz anos que não falta água na temporada de Balneário Camboriú? Uma das causas é o acordo entre a EMASA e os rizicultores de Camboriú. Em 2019, após anos de conflitos entre a captação de água para abastecimento humano e a irrigação das lavouras de arroz em Camboriú, a EMASA e os rizicultores, com mediação do Judiciário, firmaram um acordo histórico. O objetivo era simples: garantir que a água não faltasse para a população de Balneário Camboriú no verão, sem impedir os produtores de exercerem sua atividade agrícola que demanda muita água.
Esse acordo foi homologado judicialmente e desde então tem funcionado como base para os contratos de uso de canais e pontos de captação celebrados a cada safra. Em nenhum momento, nem no acordo judicial, nem nos contratos, houve qualquer proibição ao plantio de arroz. O que se regulamentou foi o uso da água do Rio Camboriú, estabelecendo:
- Períodos permitidos para irrigação;
- Condições mínimas do nível do rio;
- Compromissos de fiscalização;
- Penalidades para quem desrespeitasse.
Foi esse equilíbrio que evitou o desabastecimento nos últimos anos.
Do funcionamento exemplar ao impasse com a nova gestão
O acordo entre a EMASA e os rizicultores funcionou perfeitamente durante seis anos do governo Fabrício Oliveira. A cada safra, os termos eram renovados com base nas diretrizes homologadas judicialmente, garantindo segurança hídrica para Balneário Camboriú e previsibilidade para os produtores de arroz em Camboriú.
No entanto, com o início da nova gestão da prefeita Juliana Pavan, o cenário mudou. Dos valores previstos em contrato, os rizicultores receberam apenas uma das três parcelas. Diante do atraso, a advogada dos 24 produtores, Micheli Simas Silva, passou a cobrar providências da prefeitura.
“Durante seis anos não teve mais falta de água porque eles [os rizicultores] sabem: cada um planta em um certo momento. Porque, vamos supor, 40 famílias captando água do rio ao mesmo tempo, inclusive com bomba para encher as arrozeiras, que são áreas bastante extensas, o rio secava. Em tempos de pouca chuva, acabava faltando água para o tratamento e o abastecimento da cidade”, explicou a advogada.
Ela detalha que o acordo foi fruto de uma longa negociação, judicializada, e que a cada ano era formalizado por meio de edital, exigindo documentação específica por parte dos produtores. Tudo isso vinha sendo cumprido até então.
“Acontece que, com a mudança para o governo da Juliana Pavan, toda a equipe da EMASA foi trocada. Eles pagaram apenas a primeira parcela. A segunda, que deveria ter sido quitada até o quinto dia útil, não foi paga. Comecei a cobrar e, mesmo com o valor empenhado no Portal da Transparência, o pagamento não aconteceu.”
Diante da omissão, foi marcada uma reunião no dia 17 de março, com representantes da EMASA, da EPAGRI, da equipe jurídica do escritório da advogada representando os rizicultores. Durante o encontro, a surpresa:
“Eles disseram que não iriam pagar, alegando que o contrato proíbe o plantio. Mas isso não existe. Como é que o rizicultor vai assinar um contrato que o impede de plantar arroz? O objetivo do contrato jamais foi esse.”
Segundo a advogada, a equipe da EMASA ficou de reavaliar a situação e dar uma resposta.
O silêncio da prefeitura e a denúncia pública
Sem receber qualquer retorno oficial após a reunião, a advogada Micheli Simas Silva decidiu expor publicamente a situação. A gota d’água veio na sexta-feira, 21 de março, véspera do Dia Mundial da Água.
“Chegou na sexta-feira, 21, e eles não tinham dado resposta ainda. Eu sabia que eles queriam esperar a campanha da limpeza do Rio Camboriú, que seria no sábado, 22, para fazer a politicagem que fizeram — foram lá tirar fotinho, posando enquanto recolhiam lixo do rio”, relatou.
Indignada com o silêncio da gestão e a postura que considerou política e oportunista, Micheli gravou um vídeo denunciando o descaso com os rizicultores, que até então haviam cumprido integralmente as regras do acordo judicial e contratual.
A legenda do vídeo dizia o seguinte:
“Amanhã se comemora o Dia Mundial da Água, e os dois municípios Camboriú e Balneário Camboriú, em ação conjunta (pai e filha), juntos pela Bacia do Rio Camboriú. No entanto, às vésperas da data comemorativa, temos um retrocesso em nossa história! Lamentavelmente, sempre a corda arrebenta do lado mais fraco. No entanto, coragem e força nunca me faltaram e quero deixar claro: vamos lutar! Verás que um filho teu não foge à luta.”
A fala da advogada escancarou a contradição entre o discurso institucional de defesa da água e o ataque silencioso aos produtores que, por meio do acordo judicial, contribuíram diretamente para garantir que a água continuasse a chegar às torneiras da população
Ataques e desinformação: a tentativa de criminalização dos rizicultores
Após a publicação do vídeo, a advogada Micheli Simas Silva passou a ser alvo de críticas e ataques. Segundo ela, começaram a circular acusações infundadas de que os rizicultores estariam fraudando contratos, manipulando valores da saca de arroz e que o caso seria até “de polícia”.
Indignada, ela esclareceu como é feito, de fato, o cálculo para os pagamentos previstos em contrato:
“Surgiram acusações de que estávamos fraudando o contrato, manipulando valores de saca de arroz, entre outras coisas. Só que isso não parte de nós. Quem define os valores e as áreas plantadas é um profissional da EPAGRI, não sou eu, nem os rizicultores. A EPAGRI tem controle sobre quantas sacas são produzidas em cada área.”
A advogada explicou que a produção se dá em dois ciclos: o plantio principal, feito entre agosto e outubro, e a chamada safrinha (ou “ressoca”), que ocorre após a colheita e depende da irrigação em um período crítico — entre o Natal e o Ano Novo, justamente quando a EMASA precisa priorizar o abastecimento público.
“Foi justamente para evitar esse conflito que se firmou o acordo: os rizicultores abriram mão da safrinha, e a EMASA passou a indenizar o que deixamos de colher, que corresponde a cerca de 40% da área plantada. Esse cálculo é feito por um profissional da EPAGRI, que envia os dados diretamente à EMASA. É usada uma média dos preços da saca dos últimos três anos, e não qualquer valor aleatório.”
Ela ainda ressaltou que essa metodologia vem sendo utilizada desde a formalização do acordo judicial, e que os valores são submetidos ao Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, com a devida aprovação ano após ano.
“A EMASA não está comprando o arroz. Ela está fazendo uma forma com que a perda que a gente tem, de não captar água naquele período que eles precisam, seja restituído de alguma forma. E isso foi discutido no Tribunal de Contas. Todo ano a conta é aprovada.”
Prefeitura alega descumprimento contratual
Na segunda-feira, 24, a Prefeitura de Balneário Camboriú se manifestou publicamente sobre o impasse. Em nota, alegou que a Empresa Municipal de Água e Saneamento (EMASA) decidiu revisar o contrato com os rizicultores de Camboriú após identificar, por meio de análise técnica, inconsistências entre as cláusulas contratuais e a prática observada nas áreas envolvidas.
Segundo o comunicado, a decisão teria sido tomada internamente pela equipe técnica da autarquia e depois comunicada à Administração Direta, como parte do procedimento padrão de análise dos contratos vigentes.
A prefeitura alegou que o contrato atual estabelece que, entre dezembro e março, período de maior demanda por água, os rizicultores deveriam manter suas áreas inativas, permitindo o armazenamento da água captada. A nota também afirma que os produtores são remunerados para não plantar nesse período, com o objetivo de preservar a qualidade da água, inclusive evitando a contaminação por agrotóxicos.
A gestão ainda acusou os produtores de descumprirem o contrato ao manterem o cultivo da chamada “safrinha” durante o período vedado, e alegou haver disparidade entre a área contratada e a área realmente usada como reservatório, o que, segundo a EMASA, comprometeria os objetivos do programa.
Advogada rebate: “Não está escrito em lugar nenhum que não pode plantar”
A advogada Micheli Simas Silva contestou duramente a versão apresentada pela prefeitura, afirmando que não existe, em nenhuma cláusula contratual, proibição ao plantio de arroz.
“Não sei de onde eles tiraram que o contrato não pode plantar. Não está escrito isso no contrato. Na verdade, está escrito que a gente tem que ter reservatório de água, em nenhum momento diz do plantio.”
Ela também questiona a postura da prefeita Juliana Pavan, que ocupava o cargo de vereadora durante quatro dos seis anos em que os contratos foram celebrados e renovados:
“Então, convenhamos, é muito estranho a prefeita que foi vereadora durante toda a gestão desses anos de contrato com a EMASA… Qual era o papel dela como vereadora? De fiscalização, né? Então, se ela está alegando que durante seis anos foi feito de forma errada, onde que ela estava? Dormindo?”
Outra situação observada é que a prefeitura alega que o contrato foi feito ‘com a expectativa adicional de preservar a qualidade da água, evitando contaminação por agrotóxicos’, porém não existe nada no contrato proibindo o uso de agrotóxicos, Micheli esclarece que essa exigência não está prevista em contrato, mas surgiu como uma recomendação feita recentemente pelo Ministério Público, por meio da Promotoria do Meio Ambiente.
“Essa questão do agrotóxico entrou esse ano com a promotora aqui, que ela é do meio ambiente. Ela nos chamou para uma reunião antes da gente elaborar o acordo desse ano e ela pediu se poderia colocar uma cláusula de que a gente autorize as pessoas irem na propriedade e verificar essa situação do armazenamento e tal, da contaminação do solo. E daí a gente autorizou.”
Segundo a advogada, os rizicultores têm cumprido todas as recomendações ambientais, inclusive aceitando visitas técnicas para verificação das condições de solo e água, e a prefeitura está procurando uma desculpa para culpar os rizicultores.
Foto de drone usada pela EMASA não comprova irregularidade, diz advogada

Outro ponto de tensão levantado pela nova gestão da EMASA foi o uso de uma foto aérea feita por drone, apresentada como suposta prova de que haveria cultivo de arroz nas áreas contratadas. A imagem foi capturada no domingo, 16 de março, antes da reunião com os rizicultores.
A advogada Micheli Simas Silva contesta a validade da imagem como elemento de fiscalização, explicando que a própria EMASA descumpriu as regras previstas no contrato.
“No domingo, 16, pré-reunião, eles foram tirar foto com o drone e nos apresentaram. Só que assim ó, se tu ler ali no contrato, tá escrito que eles têm que fazer a vistoria no início do contrato. As fotos teriam que ter sido tiradas antes, coisa que a empresa não fez, tá? Isso é responsabilidade da própria empresa, tá ali contratualmente falando.”
Segundo ela, o contrato estabelece que, em caso de qualquer irregularidade observada pela autarquia, os produtores devem ser notificados e ter o direito de apresentar justificativa, o que também não foi feito.
“E outra, se constasse qualquer irregularidade, nós teríamos que ser notificados pra nos justificar ou apresentar a regularidade do contrato, tá ali na fiscalização ali. E também ninguém fez isso, né?”
Micheli explicou ainda que a imagem mostrada pela EMASA retrata uma situação isolada, e que a presença de água nos campos se devia ao manejo necessário após o período de vedação, já que o produtor precisava colher.
“Na reunião apresentaram essa foto, a gente explicou que, tanto é que se olhar ali ainda tem um pouquinho de água, que o cara tinha soltado a água, passando o carnaval, justamente porque ele precisava colher, né? Vai fazer o manejo da água. Porque assim ó, na ideia deles vai ficar três meses uma água parada. Tu vai captar a água do Rio dia 27, né? De dezembro, que nem pode, porque é bem o período que não pode captar a água, vamos dizer assim, mas vamos considerar pelo contrato deles, né? Aquele período ali a gente nem pode captar a água pelo acordo judicial, mas vamos considerar. E que nós iríamos ficar três meses com uma água que ia até ficar podre, né? Então, é soltado a água, captado a água do Rio de novo quando o nível da água estiver num certo limite, que possa ser captado.”
A advogada também rebateu o argumento da EMASA de que a situação representaria risco de desabastecimento. Segundo ela, os dados da própria régua da EMASA demonstram que o nível do Rio Camboriú nunca chegou perto do limite crítico no período apontado pela autarquia.
“Na data que a EMASA alega o descumprimento, o nível da régua da EMASA estava em 1,67. O mais baixo que ela ficou foi 1,64. Então, é considerado nível crítico abaixo de 1,25. É considerado que a gente não pode fazer o manuseio da água, que não é o caso. Então, não teve a estiagem, a gente não descumpriu nada do contrato. O nível do rio em nenhum momento era preocupante. Eles não precisavam da água, entendeu?”
Por fim, Micheli criticou duramente a postura da nova equipe da EMASA, apontando despreparo técnico e desconhecimento prático da realidade rural e do funcionamento do acordo judicial que vinha sendo respeitado até então.
“Então, o que eu penso dessa nova equipe da EMASA? Entrou ontem, não tem noção nenhuma do que está falando, não tem ideia, sabe? Falta gestão, falta conhecimento de como funciona na prática e estão falando um monte de bobagem por aí.”
Interesse nas terras dos rizicultores: “Eles querem comprar a terra por qualquer preço”
Além das alegações contratuais e das críticas públicas, a advogada Micheli Simas Silva levantou uma questão ainda mais delicada: o possível interesse das prefeituras de Balneário Camboriú e Camboriú em adquirir as terras onde vivem e produzem cerca de 40 famílias de rizicultores, justamente para a implantação do chamado Parque Inundável na Bacia do Rio Camboriú.
“Então, assim, o que realmente está acontecendo? Aquela área ali, que são essas 40 famílias, é a área do parque inundável. E eles querem comprar aquela área dos executores. E, obviamente, hoje a área é valorizada, porque além deles receberem pelo plantio, do primeiro plantio, eles ainda recebem essa indenização. Então, dá uma boa renda para eles. Então, o interesse deles de comprar a terra acabou elevando esses valores, né? Que hoje eles não vão vender por qualquer valor. Então, o intuito deles, na verdade, é fazer com que o executor tenha prejuízo para eles comprar a terra por qualquer preço”.
Micheli também usou suas redes sociais para sugerir que a quebra do acordo com os rizicultores pode ter motivações políticas e econômicas mais profundas. Em uma publicação feita após os primeiros conflitos, ela escreveu:
“Segundo que isso é uma manobra, muito sem escrúpulos, de uma família que deseja acabar com o plantio do arroz na região, porque assim as terras que hoje são plantadas, é a área do então sonhado e desejado ‘Parque Inundável’, que será necessário comprar dos rizicultores. Assim o caminho escolhido pelas duas administrações foi de, primeiro, abalar a moral de pessoas honestas e trabalhadoras. Pessoas que conheço desde muito pequena e que tenho carinho e admiração. Porque desde o tempo de meu avô os conheço!”
Ela também criticou o que chamou de encenação midiática por parte dos atuais gestores, em contraste com a realidade vivida pelas famílias produtoras:
“É fácil um jornalista que não conhece nossa história, nossa cultura e nossa terra, não sabe nem onde fica uma nascente do rio e não os conhece pelos nomes, fazer fotos tirando o lixo e fazendo com que os atuais prefeitos são os salvadores da Bacia do Rio Camboriú. Quando na verdade é ao contrário, o interesse é no sentido de trazer uma estrutura milionária nas terras que hoje os rizicultores plantam. Somos cerca de 40 famílias atingidas e que, como fora dito em uma reunião no último dia 17 de março, por representantes da empresa EMASA: ‘Vocês não fazem diferença para nós!’”